Falta de legislação de jogos eletrônicos põe em risco saúde de crianças • 22 Graus Comunicação e Marketing

Falta de legislação de jogos eletrônicos põe em risco saúde de crianças

jogos eletrônicos e saúde de crianças

Sem lei própria, jogos vendem avanço de fase, pay to win, usam estratégias de manipulação – nudges, como são chamados pela economia comportamental, além de serem estruturados com tramas que causam ansiedade, favorecem o vício e a depressão

Rafaela de Abreu Ker, 12 anos joga desde 9 anos e sempre amou games. Ela brinca diariamente e tem limite de horas de tela controlado pelos pais. Há dois anos investe em passes que dão direito a compra de acessórios: roupas, cabelinhos e outros itens para estilização dos personagens. Isso sem falar nas moedas (roboux) para pagar jogos que cobram entrada ou investir em algumas alegorias como aninais de estimação e até ajudas em momentos críticos ou mudanças de fase daqueles jogos que exigem pagamento para vencer uma etapa. Essa, considerada por especialistas como caraterística de jogo de azar porque não exige habilidade do jogador e sim investimento.

Rafaela tem uma relação saudável com a diversão eletrônica e explica: “Geralmente uso investimento de no máximo R$ 20 por mês, autorizado pela minha mãe e quase sempre para estilizar mais. É que fica mais divertido. E tem hora e alguns tipos de jogos que você só passar de fase se pagar. Eu jogo alguns sem pagar também. Mas é bom ter opção de conhecer alguns jogos mais elaborados”.

Maria Emília Ker, mãe de Rafaela, conta que a filha tem uma ótima relação com os jogos porque também disfruta de atividades fora da tela “Ela participa de um grupo de escoteiros desde muito pequena, faz atividades esportivas e gosta de lazer na natureza. Não vejo como um problema disponibilizar os recursos dos jogos para ela” comenta.

Para Edgar Jacobs, coordenador do curso de Direito da Faculdade SKEMA, o uso de inteligência artificial pode criar jogos mais viciantes e o uso de games gratuitos com compras durante o jogo agrava o problema, especialmente em face de certa fragilidade cognitiva de crianças e adolescentes. O especialista explica que no Brasil não há uma lei que proíba tal prática. Contudo, alerta que a estratégia de microtransações pay to win (P2W), ou seja, transações adicionais para um produto de entretenimento digital interativo e o uso de “caixas de recompensa” (loot boxes), que também seria uma transação adicional, mas com resultado aleatório, pode configurar jogo de azar.

“Como no Brasil já existe uma legislação sobre jogos de azar, um começo seria usar a legislação que já está pronta para limitar a possibilidade de loot boxes. Esta, porém, não me parece ser uma questão restrita a uma espécie de jogo de azar. Apesar de existir pesquisa que demonstra que os jogadores expostos a essas táticas reagem a estímulos similares aos dos jogos de azar, o que evidencia um fenômeno relativamente novo é o uso massivo das outras fragilidades humanas detectadas por meio de dados. Por isso, defendo que se crie uma lei mais ampla que abarque a complexidade que contemporâneo exige”.

Jacobs completa ainda que entregar gratuitamente um jogo para depois promover microtransações é uma estratégia lucrativa. Um estudo da consultoria Juniper Research estimou, em 2018, que os games podem ter gerado mais de R$ 160 bilhões de dólares em 2022 em virtude dos novos “modelos de monetização”.

Os jogos tipo pay to win, por exemplo, requerem transações adicionais para alterações cosméticas (novo visual do jogo ou do avatar do jogador), reduzir o tempo ou facilitar a passagem de fases, bem como para habilitar novas funções ou ferramentas (armas em jogos que as usam, por exemplo).

Essas propostas, feitas durante o jogo, afetam aspectos como a ansiedade de concluir etapas; o interesse em inserir-se em um jogo, por meio da personalização; e uma tentativa de ser alguém melhor, mais poderoso. Nesse sentido, lidam com sentimentos humanos difíceis de serem controlados. Na verdade, usam estratégias de manipulação – nudges, como são chamados pela economia comportamental – voltados para o lucro e difíceis de detectar ou resistir conscientemente.

“Nesse sentido, mesmo não usando caixas de recompensa os jogos online podem influenciar as pessoas e com uma grande coleção de dados dos jogadores o sistema fará isso com muita efetividade. Nesse caso, a situação é diferente, pois a legislação de jogos de azar não se aplica e talvez seja preciso uma regulação nova” complementa.

Para o especialista, o uso de dados e o design customizável, que estimula pequenas transações, é uma novidade. Por isso, não é uma venda comum ou uma propaganda abusiva nos moldes clássicos. A fragilidade dos consumidores é explorada de uma forma mais aprofundada e personalizada, o que diferencia essas transações das que até então eram protegidas pelo Direito do Consumidor.

Um exemplo dessas microtransações é o pagamento para retirar publicidade em alguns aplicativos. Os anúncios em games gratuitos são veiculados durante a experiência do jogador e não estão inseridos no enredo, muito menos são uma escolha. Quem anuncia aproveita o fato desses consumidores já terem sido selecionados como potenciais interessados em seus produtos.

A atividade é bem lucrativa para o jogo, que vende a atenção de consumidores cativos. A publicidade é um obstáculo que as pessoas estão dispostas a pagar para saltar. Dessa forma, é possível imaginar que, a médio prazo, do uso dessa estratégia pode até levar a uma rejeição aos produtos divulgados.

Doença dos jogos eletrônicos

Desde 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a classificar o vício em jogos eletrônicos como uma doença. A justificativa é que o comportamento de uma pessoa pode ser seriamente afetado pela necessidade e dependência por jogos eletrônicos, a ponto de abandonar hábitos pessoais como higiene básica e o convívio social.

Em crianças, os efeitos do excesso e exposição a jogos eletrônicos foi avaliado em diversos estudos coordenados pelo professor do Departamento de Sistemas de Informação e Ciência de Decisão da Universidade Estadual da Califórnia, Ofir Turel.

A conclusão dos pesquisadores, por meio de análises de ressonâncias magnéticas, é preocupante: o cérebro de crianças superexpostas a videogames e redes sociais apresenta as mesmas características e alterações nas funções que o cérebro de adultos alcoólatras e viciados em drogas. Isso pode alterar o sistema de recompensa cerebral e fazer com que estas crianças sejam mais propensas a outros vícios no futuro.

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